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terça-feira, 2 de novembro de 2010


Eu sei, mas não devia
   
Eu sei que a gente se acostuma.Mas não devia.
 A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista 
que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
 E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
 E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
 A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. 
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,  um ressentimento ali, uma revolta acolá.  
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. 
Se acostuma para evitar feridas,  sangramentos, para poupar o peito. 
A gente se acostuma para poupar a vida  que aos poucos se gasta e, que gasta,  de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colassanti

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